Este é um conto que não tem data, escrito em letras pretas sob um papel branco e depois transcrito para cá, o reino digital. Apesar disto, ele tem muitas cores.
Havia, nas margens de um riozinho pequeno em largura mas abundante em água, dois povos que viviam um em cada lado. Um era o povo Branco, e o outro, o povo Preto. Esses dois povos viviam em um mundo incolor, tão incolor quanto eles próprios. O céu, tão azul quanto o vemos, era cinza; as arvores também, assim como todos os animais. O chão era quase branco e as pedras muito pretas, como exceção daquelas que ficavam perto demais do rio e eram branquinhas. Assim eram as pétalas e folhas e as casas e as rolhas. Eram assim as vendinhas e o que vendia nas vendinhas. E as crianças e suas pipas, os jovens, os velhos e os adultos. Tudo branco ou preto, ou menos branco ou quase preto, ou meio cinza ou então bem alvo. Era preto no branco: um mundo incolor.
Os povos não tinham nenhum contato, nunca se falavam. Quando alguém passava perto do rio e via um outro alguém lá do outro lado, esse primeiro alguém não dava bola a alguém tão preto quanto as panelas que tinha em casa. Não havia por quê olhar ou conversar ou amigar; era preto demais e muito diferente. E quando esse outro segundo alguém via também o primeiro alguém que passava pelo rio, não queria saber de papo. Era alguém tão branco quanto o leite poderia ser, e não saberia conversar sobre as coisas pretas. Os dois alguéns preferiam virar suas costas e continuarem seu rumo, sem saberem um do outro.
Na região dos povos Branco e Preto era tudo cronometrado: quando o sol ia embora a lua chegava, e quando a lua chegava o sol ia embora. E quando era pra cair chuva, o sol saia e dava espaço, e a chuva vinha e jorrava. E quando a chuva tirava o time do campo, o sol voltava, não sem antes certificar de que todas as gotas tinham zarpado. O povo Branco sempre acordava a mesma hora e ia dormir a mesma hora, e o povo Preto tomava banho e escovava o dente na mesma hora. E as galinhas e os patos e a raposa sabiam a hora de shhhhchar pra noite chegar, preta. E os pássaros e as crianças e os cataventos sabiam a hora de gritar e rir, para dar boas-vindas ao sol, que deixava o dia branco.
E assim viviam os povos Branco e Preto do rio sem cor.
Até que um dia, uma coisa aconteceu. Ninguém sabe o porquê, nem eu sei, e nem nunca ninguém vai saber. E o que aconteceu foi ou um atraso do sol ou um adiantamento da chuva. Fato é que o sol estava lá no céu, brilhando como sempre no dia branco. Era pra chuva esperar a vez dela pra jorrar, mas não esperou, e jorrou antes! Teria o sol petrificado de surpresa, e por isso não saiu? O sol ficou olhando a chuva jorrar, e pela primeira vez os dois haviam se encontrado. O sol olhava nos olhos das gotas que retribuíam o olhar, confusas. “Que esquisito!”, pensavam os povos lá embaixo, que jamais tiveram de usar a palavra “esquisito”, e acharam aquilo também esquisito.
E o que aconteceu depois, nenhum dos povos esperava.
O sol ficou ali e jogou seus raios nas gotas que jorravam. As gotas, sem querer, começaram a resplandecer e jogar no céu cores que jamais souberam serem capaz de criar. “Veja aquilo!”, berravam os povos Branco e Preto, sem acreditar em seus olhos: um enorme arco-íris acabava de se formar, bem acima do rio sem cor! E aquele arco-íris formou uma ponte por sobre o rio, uma ponte toda colorida que juntava a margem do povo Branco com a margem do povo Preto. Toda a multidão que havia juntado ali agora se olhava. O povo Branco mirava a outra margem com as bocas todas abertas e os queixos quase ao chão; olhavam diretamente para os olhos de quem estava do outro lado. O povo Preto quase não respirava, e apenas devolviam os olhares fixos, os corpos estáticos, não moviam um dedinho.
Eles ficaram por muito tempo assim, se olhando.
O arco-íris brilhava absoluto entre eles, a ponte mais colorida que já havia existido. A única coisa que se mexia era o rio, que continuava seu curso passando por baixo do arco-íris.
Até que uma criança preta se mexeu.
Mexeu a perninha, e depois a outra, e a outra. E veio andando para perto da ponte, e chegou na margem do rio. Ninguém mais se mexia, apenas olhavam a criança do povo Preto. Passaram vários segundos, ou minutos, ou até horas, até que a criança ficasse frente a frente com aquela inesperada ponte. Foi só um passo pequeno, mas o que aconteceu em seguida desafiou todas as crenças dos povos do rio: a multidão urrou em uníssono quando a criança preta pisou no amarelo do arco-íris e ficou instantaneamente… amarela!
Que gritaria! Ninguém podia acreditar no que acontecera; a criança preta-agora-amarela olhava para si mesma e ria gostosamente, e os povos foram percebendo que nada havia de mal e pararam de gritar, e a criança pisou no vermelho e ficou vermelha; e pisou no azul e ficou toda azul, os dedinhos e as unhas e os cabelos e a sobrancelha toda azul, até pisar no verde e então os dedinhos e as unhas e os cabelos e a sobrancelha ficaram todos verdes. E a criança pisava no arco-íris todo e quase chorava do tanto que ria. Os dois povos olhavam, atônitos. E uma criança branca resolveu pisar no arco-íris e ficou toda amarela e depois vermelha e azul e então verde, e ria tanto que lhe havia água nos olhos; e os povos olhavam uns aos outros e olhavam o arco-íris e as crianças que nele pisavam.
E então mais uma coisa absurda aconteceu em frente aos povos do rio: as crianças tocaram as mãos!
E a criança branca-agora-azul tocou de leve na criança preta-agora-vermelha, e as duas ficaram roxas! E as duas crianças-dos-povos-do-rio-agora-roxas olhavam com assombro uma para a outra, pois nunca haviam se visto com a mesma tonalidade antes. Elas colocaram um dedo roxo sob o outro dedo roxo e viram que parecia o mesmo dedo; e resolveram entrelaçar todos os dedos das duas mãos, uma na outra, e viram aqueles montes de dedos roxos iguais se mexendo, e riram olhando-se nos olhos roxos, pois nenhuma das duas sabiam mais de quem era o dedo-roxo-de-quem.
E resolveram se soltar e mudar de cor, e a criança roxa agora ficou amarela de novo, e a outra ficou azul de novo, e assim que mudaram de cor correram para um abraço bem no meio do arco-íris; e os povos das duas margens do rio soltaram o ar que prendiam, assistindo deslumbrados o abraço de duas crianças verdes.
As crianças agora mudavam de cor e se abraçavam, só pra ver que cor nova ia dar. Enquanto isso mais gente foi chegando perto do arco-íris, inicialmente com muito receio, mas depois com alegria; e logo o arco-íris estava muito cheio de povos do rio nem Brancos e nem Pretos, mas o povo mais colorido que já havia se visto em todo o mundo; não sabiam mais quem era do seu povo e quem não era, pois o compadre que estava sempre branco agora aparecia marrom, e a comadre sempre preta agora pulava em vários tons de rosa choque. E assim ficaram por muito tempo, os povos coloridos do rio, pisando no arco-íris, até que todos eles – todos mesmo! – tinham trocado suas cores: não havia mais a ausência de cor nos pretos, e agora resplandecia a mistura de todas as cores nos brancos. Enquanto outros iam pisar no arco-íris, muitos haviam se espalhado por todos os lugares, pois atravessaram para o outro lado e nem perceberam; não sabiam mais ao certo qual era o seu lado… dos dois lados tinha gente de tudo quanto é cor. E conversavam alegremente com quem nunca haviam conversado, mostrando suas cores e admirando a cor do outro.
Foi quando um alguém muito magenta percebeu.
O arco-íris começou a ficar mais fraco. Não se sabe se foi pelo uso excessivo de suas cores ou porque aquilo acontecia mesmo com arco-írises. Ninguém sabe o porquê, nem eu sei, e nem nunca ninguém vai saber. O que sei é que esse alguém muito magenta percebeu que a ponte desfalecia sob seus pés, e resolver sair, e avisou todos que o arco-íris estava sumindo. Todo mundo saiu rapidinho de lá de cima, e era muita gente para sair, e demorou um bocado para cada pessoa voltar ao seu lugar. E esse lugar para onde cada pessoa voltou não era bem o seu lado, pois elas agora podiam ir para o lado que quisessem.
Mas as duas crianças que haviam pisado primeiro no arco-íris não queriam sair.
“Voltem aqui, já!” gritavam os amarelos e roxos e rosas de um lado.
“Saiam já dai!” gritavam os marrons e os anis e os verdes do outro.
“Não queremos, gostamos daqui!” responderam as duas crianças vermelhas em cima do arco-íris.
E então aconteceu, tão rápido, mas tão rápido, que ninguém pôde fazer nada.
O arco-íris finalmente sumiu.
E as duas crianças, que eram uma branca e outra preta e então ficaram coloridas, e depois mudaram de cor e ficaram uma vermelha e outra azul, e que se abraçaram e juntas ficaram roxas, elas caíram no rio, e só se viu uma mancha muito vermelha onde elas afundaram, como se alguém houvesse jogado muita tinta ali.
Aquela mancha vermelha das crianças foi sendo levada pelo rio, e formou uma linha que corria, e que não mudava de cor. A linha ficou vermelha até o rio a levar por completo, virando na curva da estrada.
Os dois povos todos coloridos, cada um com uma cor, todos eles, olhavam em silêncio para o rio.
Por muito tempo ficaram assim, fitando o rio que voltava a ser branco, com suas pedras também brancas, incrustadas no barranco preto de gramas pretas.
Cada um dos alguéns que ali estavam foram, um a um, perdendo suas cores. Quem estava bem verdinho mesmo, como uma melancia, foi ficando cinza, cinza, até chegar no seu preto natural, que agora refletiam seu estado de espirito; e quem estava tão laranja quanto as laranjas que ficam no topo das laranjeiras também foram ficando cinza, até chegar ao branco que sempre as representou, um branco fantasmagórico.
E quem estava roxo e azul e amarelo e fúcsia e rosa e marrom e com cor de açúcar queimado agora ficava branco ou preto, ou preto ou branco. Mas, curiosamente, quem estava vermelho continuou vermelho.
E assim os povos do rio perderam todas suas cores, e choravam baixinho. Muitas pessoas do povo Branco foram para o outro lado da margem e ali ficaram, chorando juntos aos Pretos; e muitos do povo Preto também haviam ido pro outro lado, e agora choravam as mesmas lágrimas dos Brancos.
E como não havia mais a ponte a ligar as duas margens do rio, os povos agora Pretos e Brancos foram cada um para seu lado. Não se olharam. Viraram suas costas e voltaram a suas casas, todos misturados. Ficaram alguns vermelhos do lado Branco e Preto, e alguns vermelhos do lado Preto e Branco, mas ninguém falou nada. Não havia o que dizer.
Aquele foi o dia mais feliz e mais triste da vida dos povos do rio.
Vários anos se passaram. Os povos do rio voltaram a viver cada qual em sua casa, com seu povo misturado, de gente branca e gente preta e algumas gentes vermelhas. E não mais falaram com o outro povo da outra margem, que assim como eles também tinham gente branca e gente preta e algumas gentes vermelhas. Eles passavam perto da margem e não ousavam olhar para o outro lado; na verdade, desde o dia feliz e triste, ninguém mais olhou para o rio.
E o sol e a chuva e a lua continuaram seus caminhos, tomando muito mais cuidado para que não fossem vistos juntos.
Os brancos e pretos e vermelhos foram vivendo suas vidas, e como eles agora estavam misturados, não havia mais porquê não se misturarem de vez; e pessoas brancas começaram a gostar muito das vermelhas – que amavam as pretas, as brancas e até outros vermelhos. E os pretos amavam muito os brancos e também os vermelhos, e estes lhe retribuíam, e assim se casavam, e tinham filhos, os brancos com os pretos com os vermelhos. E esses filhos dos brancos-pretos-vermelhos nasciam diferentes. Quando o preto tinha um filho com o branco, saia um bebê bem cinza, de cabelos e unhas e olhos cinzas, que podia ser um cinza bem escuro como nuvens de tempestade ou um cinza clarinho que nem calça de moletom. E quando o branco tinha um filho com um vermelho o bebê vinha rosa, de pezinhos e orelhas rosas, que podia ser como um chicletes ou como um pêssego maduro. E assim nasciam os bebês diferentes, de pais pretos com vermelhos ou brancos com pretos ou vermelhos com brancos; e esses bebês cresciam e tinham filhos.
E os filhos desses bebês agora bem grandes vinham ainda mais diferentes, com tonalidades diversas. E essas tonalidades foram se transformando em outras, e em outras, e um dia, depois de muito tempo que as crianças caíram na água do rio sem cor, os povos do rio estavam coloridos de novo, como no dia do arco-íris: tinha gente índigo e lavanda e cinza azulado, e tinha gente turquesa e lima e dourado, e tinha uns azuis muito claros e outros bem escuros, e uns cinzas quase prata e uns brancos bem perolados, e uns pretos com algumas listras muito bonitas.
Até que um dia, duas crianças bem vermelhas, como morango novo, se encontraram na margem do rio.
Olharam uma para a outra, e sorriram.
Sentaram, uma em cada lado da margem do rio sem cor, e se puseram a conversar na linguagem do olhar.
E passou um alguém por ali que viu aquilo, e também quis sentar um pouco. E outro alguém lá da outra margem também viu as crianças e o alguém, e sentou. E muita gente colorida que ali passava começou a sentar e a observar a outra margem; e assim formou-se uma multidão de pessoas coloridas, tão coloridas que parecia que outro arco-íris havia aparecido naquele local. E elas olhavam uma para as outras, e admiravam as cores uma das outras, pois cada um tinha uma tonalidade um pouquinho diferente, ou uma listrinha ou um pontinho diferente, ou uma cor antes nunca vista, e era bonito que só.
Então as crianças vermelhas levantaram, chegaram perto da margem do rio e começaram a rir.
E todos riram também, e logo havia muita gente colorida rindo à toa; eles não sabiam muito porque estavam rindo, mas era tão gostoso, e tão raro!
Depois deste dia decidiram construir uma ponte sobre o rio.
Os povos do rio se misturaram de vez, juntaram suas margens, e são o povo mais colorido que existe no planeta inteiro.
E é essa a história que todo vovô e vovó dos povos do rio contam a seus netos quando eles perguntam de onde o povo colorido veio.
“Eles vieram do amor, do sacrifício do amor, da aceitação, que também compreende muito amor.”
E é por isso que todas as crianças de todos os povos de todo o mundo sabem: o vermelho é mesmo a cor do amor.
Autora: Deva Chinmayo.